Enquanto ela mexia lenta e precisamente a feijoada que quase transbordava da panela, me dei conta de que ela um dia cessaria. Abandonaria-nos para descansar, para viver uma nova fase de existência: a de não mais ser. Qual teoria do além estaria certa? De que forma continuaria sendo após a morte? Apenas uma lembrança feliz, mas dolorida justamente por ser uma lembrança? Como que ela existiria se não mais fosse?
Não não não. Ela não pode ir, pois sempre foi, sempre esteve. Ela é nossa Úrsula*, é uma energia que transcende o tempo e o espaço, nos mantém unidos em torno do seu riso, das suas histórias, das suas comidas. É a presença indispensável mesmo quando não está, mesmo quando mergulhamos no todo dia e deixamos as vovós de lado. Será que ela sabe que está, mesmo quando não está?
E está mexendo, adicionando água, cuidando, querendo conversar, contando histórias que me fazem querer chorar. Você sabe, Marcela, que você adorava brincar de casinha embaixo daquela mesa lá da sala, da casa antiga? Eu te dava os copos, as coisas e ficavas lá brincando. Quando teu primo ia brincar sozinho, das vezes que você não vinha, eu não dava as coisas pra ele. Sabe que que ele me disse uma vez? Falou: “Vó, por que a Marcela pode e eu não?”. Ele queria saber se eu gostava mais de você do que dele.
Vó, queria tanto que você fosse mais nova, falei impulsivamente. Ela mudou a feição, como quem entende, mas depois desconversa com os olhos. E os primos chegaram brincando e rindo e abraçando a senhorinha que um dia nos deixaria.
E, naquele momento, não pude me entregar ao carinho, pois sabia que ele me afundaria mais ainda na dor futura. Depois, depois eu consigo. Agora não. E saí da cozinha.
*referência a Cem Anos de Solidão
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"O único mal irremediável"
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